sábado, fevereiro 03, 2007

A vida e a rotina fundem-se numa só

São cinco e meia da tarde, é chegada a hora, nem mais um segundo, a pontualidade vespertina é algo extraordinário. A saída dos seus formigueiros é feita num ápice a que todos nós damos o nome de rotina. Misturam-se cheiros, cores, corpos, numa velocidade que surpreende quem assiste serenamente a este passar de rebanhos, varas, manadas que por mais diferentes que sejam umas dos outras, reúnem-se num mesmo passo acelerado conduzidos por um bastão invísivel de um pastor imaginário.
Vão em direcção a tocas habilmente esculpidas no sub solo, empurram-se, desviam-se, praguejam, mas sem nunca pararem para olhar para trás, de tão compenetrados que estão na tarefa a que se propuseram. Estão em direcção de algo que se move nas catacumbas da cidade e cujo lugar a essa hora do dia é precioso demais para se perder, o metropolitano de Lisboa.
Chegado este, os indíviduos atiram-se para as portas, na busca de um tão precioso assento, esquecem tudo aquilo que os seus pais insistentemente durante anos a fio lhes procuraram passar, a educação. Nem que para isso utilizem braços, guarda-chuvas, malas, jornais habilmente enrolados para este propósito,tudo serve para desviar quem se atravessa no seu caminho. Neste selvagem transporte em hora de ponta, assiste-se a um “salve-se quem puder”.
Os vencidos nesta dura batalha, procuram então em pé agarrar-se a umas pequenas saliências incrustadas no tecto, por último os eternos perdedores, acabam por encostar-se uns aos outros numa entreajuda de salutar e dançam ao ritmo do balanço do metro, num conjunto de passos incertos e inesperados cujo o destino muitas vezes é ver o chão mais perto, às vezes perto demais...trazendo muitas vezes atrás um passageiro incauto que se deixou agarrar por alguém em queda livre.
Entretanto estando esta discoteca com lotação esgotada, como qualquer espaço em Portugal, aplica-se o lema “cabe sempre mais um”, e isto é uma máxima que dura até ao fim da viagem, por cada estação por onde passe esta máquina da escuridão. Somam-se inúmeras pessoas que se lançam em força para a multidão que se acumula, para arranjarem um pequeno espaço onde caibam dois pés primeiramente, e depois por acréscimo o resto do corpo...Tudo isto para que se chegue a casa uns dez míseros minutos antes, é a dita rotina que muitos temem não seguir à risca, pois sem esta, o dia encontra-se arruinado...
Porém existe um eterno problema que se põe aos saudosos vencedores do dia, que se encontram bem acomodados nas cadeiras, os olhares fulminantes dos idosos... Estes senhores são temidos por todas as pessoas que se encontram sentadas, são o terror do metro. As pessoas de idade lançam olhares fulminantes por entre as rugas que lhes definem o rosto, e têm o poder de fazer sentir mal qualquer pessoa que com eles cruza o olhar,acabando por a pessoa se levantar não conseguindo enfrentar por mais tempo este poderoso olhar. A vítima acaba tristemente por entrar na dança de quem em pé se encontra e se debate com o percurso sinuoso deste transporte.
Enquanto isso, existem uns tantos sentados que comemoram esta vitória de forma bem peculiar, é o chamado sono do metropolitano, algo que tem características muito próprias: primeiramente existe um eterno abrir e fechar de olhos, numa luta titânica entre o sono e a sua vítima, depois dá-se o estado de adormecimento que é caracterizado por um abrir de boca acompanhado por vezes de fios de saliva que caiem sem aviso prévio (fenómeno estranho este de domir de boca aberta...), junta-se um rodar constante do tronco para cima dos restantes passageiros, culminando com uma cabeçada no vidro que termina com este fenómeno por momentos. Quantos de nós não assistiram a esta maravilhosa cena? Quantos de nós se desviaram da saliva, vulgo baba, de um estranho?
Por último, não poderia deixar de transparecer o meu desagrado por quem teve a brilhante ideia de colocar um dispositivo que permite apanhar rede de telemóvel no metro... Era o único sítio em que eu me abstraía de tudo isto, e a minha desculpa como a de vários portugueses para não atendermos uma dita chamada, “Estou no metro.. não te oiço... adeus...” e estava resolvido!! Hoje em dia não só não temos esta desculpa, como ouvimos diariamente as pessoas a berrar literalmente aos nossos ouvidos porque o metro faz um “pouco” de ruído, o que implica, consequentemente aumento dos décibeis... e então a conversa é a seguinte: “ATÃO TÁS BOM? NÃO ‘TOU A OUVIR, FALA MAIS ALTO!!JÁ SABIAS QUE HÁ REDE NO METRO??REDE!!NO METRO!!JÁ HÁ REDE!!PORRA...NO METRO JÁ HÁ REDE!!OK ATAO A GENTE JÁ FALA DAQUI A UM CADO...XAU...” E enquanto isto, eu ao lado desta senhora, enchiam-me de uma estrondosa chuva de perdigotos, e os meus ouvidos depois disto já não eram os mesmos...
Enfim no fundo apenas vos quero mostrar que estas viagens podem ter um certo humor, basta olharmos com outros olhos para o que à nossa volta acontece e os motivos para saírmos do metro com um sorriso na cara serão muitos, esquecendo por momentos as dolorosas condições em que muitas vezes são feitas estas viagens.

3 comentários:

Rui Catalão disse...

Ainda ontem tive o (des)prazer de vivenciar mais um destes casos, esses de indivíduos que se recostam nos vidros das carruagens do metro e acabam por tombar, adormecidos, para cima de quem não tem culpa alguma da sonolência alheia. Isto para não falar da baba, é claro. Mas não entremos por aí...

Abraço

Anónimo disse...

Não será isto o "estar sozinho no meio da multidão"? Nos dias de hoje andamos tão embrenhados nas nossas vidas, nos nossos problemas e preocupações que ignoramos o mar de vidas que passa ao nosso lado... Ao menos há um Mike que está atento aos outros, à vida que existe além da sua vida =D
Adorei!!!

Beijinhos

(esqueceste te de referir a mancha de gordura que fica no vidro, quando alguem com alguns dias de banho em atraso decide descancar os olhos num regresso a casa)

Anónimo disse...

E depois há aquelas pessoas que decidem ter uma história, quem sabe uma aventura, antes de entrar na carruagem... sabes do que falo... quando sujeitos distraidos escorregam e culpam o metro e insistem em processá-lo... enfim...

beijo...