segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Curiosidade parte I

O povo português é dotado de algo insaciável, algo que não consegue controlar, e precisa desta como do ar que respira. A sua vida não faria sentido se todos os dias não a satisfizesse. Essa necessidade incontrolável, que nos caracteriza, dá pelo nome de curiosidade. Somos um povo algo metediço, o nosso nariz mete-se em tudo onde não é chamado, a coscuvilhice é o pão nosso de cada dia, não escolhe pessoas, classes, etnias.
Mas porque me julgo eu no direito de apontar esta característica ao povo em geral e não a uma classe de pessoas em particular? Realmente não sei, agora que penso nisso…porque no fundo eu não sou ninguém para classificar um povo, se me chamasse Nuno Rogeiro talvez aí sim pudesse falar sobre tudo e todos, dizer do sicrano e do beltrano o que bem me apetecer, e brincar às guerras nos estúdios da SIC com tanques e soldados para explicar às pessoas lá em casa como tudo acontece... Mas não sendo eu ninguém, também ninguém me vai ler, o que me dá alguma liberdade, e isso é bom nos tempos que correm.
Mas voltando ao cerne da questão, a realidade com que nos deparamos diariamente comprova esta característica.
Ora tracemos o cenário do acontecimento A:
O cenário é composto por uma larga rua, onde não falta o café Central, cuja dona é a Chica Maria, mãe do Julinho, o menino dos seus olhos; a mercearia da Arlete que se ajuntou ao Júlio vai "pra" mais de 10 anos e não gosta nada da sogra, que é ruim como as cobras, o talho do Júlio, aquele que veste as calças em casa da Arlete e frequenta uma casa de meninas sem a Arlete saber... e por último as senhoras de idade que se encontram todas à janela, munidas dos seus óculos de ver ao longe de modo a obter um campo de visão alargado, observando cada passo dos seus vizinhos, cada diminuta mudança neste cenário matinal que possa dar azo a um boato, a uma polémica, a uma simples coscuvilhice, algo que as delicie e fuja à rotina dos seus tempos de reformada.
No talho por entre costeletas, bifanas, tubaros e outras iguarias do género discute-se o futebol, porque o Júlio, fervoroso adepto do Glorioso, não deixa que a superioridade do seu Benfas seja posta em causa. Ameaçadoramente, de faca em punho, vocifera perante os seus clientes e adversários clubísticos, enquanto atinge as bifanas da Dona Celeste com os perdigotos lançados no calor discussão, porque com o Júlio talhante, ninguém faz farinha!!
No Café Central, Chica Maria é dona de uma posição privilegiada para observar quem no seu estabelecimento se senta, sabendo de forma exemplar a vida de cada um dos seus fregueses, mestre na arte de coscuvilhar, partilha com os fregueses as suas informações fresquinhas. Quando a conversa esmorece, coloca-se à porta do estabelecimento praguejando com a sua nora, que na sua visão, trata muito mal o seu rico filho. A clientela é constituída essencialmente por pessoas de meia idade, entre um bolinho e um cafezinho, acompanhado do copinho de água, estes seres embrenham-se na sua actividade favorita, o corte e costura, ninguém está a salvo das conversas destas senhoras, uma verdadeira “tertúlia cor de rosa” em formato local e sem o maravilhoso Cláudio Ramos (esse homem com M grande). Elas casam e descasam pessoas, elas falam daquele que traiu a outra, o filho da outra que foi apanhado com as calças na mão, enfim de tudo um pouco se fala, e mesmo quando quase nada há a dizer, elas fazem questão de acrescentar sempre mais uma acha para esta grande fogueira. Normalmente isto é tudo falado em surdina e sem referências a nomes, pois a memória já falha, portanto o senhor de nome António, é o filho daquela que era casada com o outro da oficina, e depois desta explicação tão clara, todos ficam a perceber de quem se fala. No final do dia está lançada a polémica em casa do pobre António que mal sabe da bronca que o espera com a sua mulher Judite.
Por fim a mercearia não é mais do que a continuação das conversas de café, muda o cenário, agora composto por vegetais, fruta; muda a dona do estabelecimento, Arlete de seu nome, (cuja vida se divide entre a mercearia, o talho e as discussões com a velha sogra); mas não muda o assunto, o António continua a ser falado à boca cheia, e já o boato se propagou pela restante vizinhança.
Agora traçado o cenário num próximo post, ir-vos-ei mostrar como uma mera queda de um estranho transforma a vida e faz as delícias de quem vive nesta pacata rua.

sábado, fevereiro 03, 2007

A vida e a rotina fundem-se numa só

São cinco e meia da tarde, é chegada a hora, nem mais um segundo, a pontualidade vespertina é algo extraordinário. A saída dos seus formigueiros é feita num ápice a que todos nós damos o nome de rotina. Misturam-se cheiros, cores, corpos, numa velocidade que surpreende quem assiste serenamente a este passar de rebanhos, varas, manadas que por mais diferentes que sejam umas dos outras, reúnem-se num mesmo passo acelerado conduzidos por um bastão invísivel de um pastor imaginário.
Vão em direcção a tocas habilmente esculpidas no sub solo, empurram-se, desviam-se, praguejam, mas sem nunca pararem para olhar para trás, de tão compenetrados que estão na tarefa a que se propuseram. Estão em direcção de algo que se move nas catacumbas da cidade e cujo lugar a essa hora do dia é precioso demais para se perder, o metropolitano de Lisboa.
Chegado este, os indíviduos atiram-se para as portas, na busca de um tão precioso assento, esquecem tudo aquilo que os seus pais insistentemente durante anos a fio lhes procuraram passar, a educação. Nem que para isso utilizem braços, guarda-chuvas, malas, jornais habilmente enrolados para este propósito,tudo serve para desviar quem se atravessa no seu caminho. Neste selvagem transporte em hora de ponta, assiste-se a um “salve-se quem puder”.
Os vencidos nesta dura batalha, procuram então em pé agarrar-se a umas pequenas saliências incrustadas no tecto, por último os eternos perdedores, acabam por encostar-se uns aos outros numa entreajuda de salutar e dançam ao ritmo do balanço do metro, num conjunto de passos incertos e inesperados cujo o destino muitas vezes é ver o chão mais perto, às vezes perto demais...trazendo muitas vezes atrás um passageiro incauto que se deixou agarrar por alguém em queda livre.
Entretanto estando esta discoteca com lotação esgotada, como qualquer espaço em Portugal, aplica-se o lema “cabe sempre mais um”, e isto é uma máxima que dura até ao fim da viagem, por cada estação por onde passe esta máquina da escuridão. Somam-se inúmeras pessoas que se lançam em força para a multidão que se acumula, para arranjarem um pequeno espaço onde caibam dois pés primeiramente, e depois por acréscimo o resto do corpo...Tudo isto para que se chegue a casa uns dez míseros minutos antes, é a dita rotina que muitos temem não seguir à risca, pois sem esta, o dia encontra-se arruinado...
Porém existe um eterno problema que se põe aos saudosos vencedores do dia, que se encontram bem acomodados nas cadeiras, os olhares fulminantes dos idosos... Estes senhores são temidos por todas as pessoas que se encontram sentadas, são o terror do metro. As pessoas de idade lançam olhares fulminantes por entre as rugas que lhes definem o rosto, e têm o poder de fazer sentir mal qualquer pessoa que com eles cruza o olhar,acabando por a pessoa se levantar não conseguindo enfrentar por mais tempo este poderoso olhar. A vítima acaba tristemente por entrar na dança de quem em pé se encontra e se debate com o percurso sinuoso deste transporte.
Enquanto isso, existem uns tantos sentados que comemoram esta vitória de forma bem peculiar, é o chamado sono do metropolitano, algo que tem características muito próprias: primeiramente existe um eterno abrir e fechar de olhos, numa luta titânica entre o sono e a sua vítima, depois dá-se o estado de adormecimento que é caracterizado por um abrir de boca acompanhado por vezes de fios de saliva que caiem sem aviso prévio (fenómeno estranho este de domir de boca aberta...), junta-se um rodar constante do tronco para cima dos restantes passageiros, culminando com uma cabeçada no vidro que termina com este fenómeno por momentos. Quantos de nós não assistiram a esta maravilhosa cena? Quantos de nós se desviaram da saliva, vulgo baba, de um estranho?
Por último, não poderia deixar de transparecer o meu desagrado por quem teve a brilhante ideia de colocar um dispositivo que permite apanhar rede de telemóvel no metro... Era o único sítio em que eu me abstraía de tudo isto, e a minha desculpa como a de vários portugueses para não atendermos uma dita chamada, “Estou no metro.. não te oiço... adeus...” e estava resolvido!! Hoje em dia não só não temos esta desculpa, como ouvimos diariamente as pessoas a berrar literalmente aos nossos ouvidos porque o metro faz um “pouco” de ruído, o que implica, consequentemente aumento dos décibeis... e então a conversa é a seguinte: “ATÃO TÁS BOM? NÃO ‘TOU A OUVIR, FALA MAIS ALTO!!JÁ SABIAS QUE HÁ REDE NO METRO??REDE!!NO METRO!!JÁ HÁ REDE!!PORRA...NO METRO JÁ HÁ REDE!!OK ATAO A GENTE JÁ FALA DAQUI A UM CADO...XAU...” E enquanto isto, eu ao lado desta senhora, enchiam-me de uma estrondosa chuva de perdigotos, e os meus ouvidos depois disto já não eram os mesmos...
Enfim no fundo apenas vos quero mostrar que estas viagens podem ter um certo humor, basta olharmos com outros olhos para o que à nossa volta acontece e os motivos para saírmos do metro com um sorriso na cara serão muitos, esquecendo por momentos as dolorosas condições em que muitas vezes são feitas estas viagens.